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Letramento científico no consultório


Por Camila Lafetá Sesana, nutricionista

No vídeo que circulou pelo WhatsApp, a mulher está solene, sentada diante de um computador, dedo indicador preso ao que parece ser um oxímetro, uma faixa preta na cabeça de onde saem fios, talvez eletrodos, fazendo “seu exame complex”, diz Denis César Barros Furtado, o médico conhecido pelo infame apelido de Dr. Bumbum, que levou uma paciente a óbito depois de um procedimento de bioplastia de glúteos. Segundo ele, o exame contém eletrocardiograma e uma “leitura sistêmica” do corpo, com análise de “todos os órgãos, metabolismo, deficiências hormonais, minerais, vitamínicas, situações inflamatórias, alimentação alergênica e toda a parte emocional” (sic).

Na manhã de hoje, a polícia prendeu a massoterapeuta Patrícia Sílvia dos Santos, a Paty Bumbum, que se fazia passar por médica e injetava silicone industrial líquidos em suas clientes. Em áudios divulgados na imprensa, ela comentou o caso acima, dizendo que “todo ano morria alguma [mulher]” após procedimento estético, mas que “pelo menos não morre feia”.

Esses dois casos me levaram a pensar no mar de blogueiras, coaches, gurus e, infelizmente, médicos e nutricionistas que alimentam o Instagram de conselhos e dicas perigosos e muitas vezes desprovidos de (ou contrários a) evidências científicas.

Ensinar pacientes a serem consumidores críticos de informações veiculadas em redes sociais passou a fazer parte do cotidiano de nossos consultórios: saber identificar manipulação de imagens, deixar de comparar seu corpo ao corpo de quem faz dele sua profissão, reconhecer e evitar propagadores da mentalidade de dieta etc. Recentemente, contudo, tenho achado cada vez mais essencial abordar também o letramento científico (“scientific literacy”) na área da saúde e da nutrição. De forma bem resumida, uma pessoa letrada cientificamente conhece e compreende conceitos e processos científicos e consegue aplicá-los para analisar o mundo à sua volta. O letramento científico nos permite, por exemplo, julgar a qualidade de uma informação científica com base em sua fonte e avaliar argumentos com base em evidências. Uma pessoa cientificamente letrada não precisa compreender a tecnologia por trás de um exame vendido por um charlatão para desconfiar da impossibilidade de analisar “sua parte emocional” através da pele. Uma pessoa cientificamente letrada sabe que não existem “calorias negativas”, que a carne “não apodrece no intestino por três dias” e entende que o chá verde não “viaja” até a barriga para queimar gordura só ali.

Independente da origem ou do nível de escolaridade do paciente, é preciso adaptar a conversa para que ela de fato produza algum efeito. O conhecimento científico da população brasileira é sofrível. Trabalhos mostram que apenas 5% dos brasileiros acima de 15 anos podem ser considerados letrados cientificamente[1] e que 79% dos entrevistados não acessam conteúdos sobre ciência por achá-los complicados e incompreensíveis[2]. A popularidade e o apelo de modismos alimentares e das promessas de efeito rápido são sedutoras e ajudam a piorar a situação.

Acredito que um primeiro passo seja plantar as sementes da dúvida em relação às fontes de informação. Ter um “doutor” ou um “nutri” no perfil do Instagram não dá atestado de competência para ninguém. Na dúvida – e é muito saudável duvidar! -, incentive a pesquisa em fontes oficiais, sites de sociedades profissionais e blogs de divulgação científica, como Ciência InForma e ScienceBlogs Brasil. Explore as incertezas e crenças do paciente durante a consulta e antecipe as dúvidas mais comuns sobre alimentação. Faça a sua própria divulgação científica nas redes, com informação atualizada e de qualidade. E cuide bem das suas dúvidas você também.

[1] Gomes V, Santos AC. Perspectivas da alfabetização e letramento científico no Brasil: levantamento bibliométrico e opinião de profissionais da educação do ensino fundamental I. Disponível em: https://www.scientiaplena.org.br/sp/article/viewFile/4063/1975

[2] Alisson E. Conhecimento da Sociedade sobre Ciência na América Latina é Dramático. São Paulo: Agência Fapesp, 2015. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/conhecimento_da_sociedade_sobre_ciencia_na_america_latina_e_dramatico/ 20985/.



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