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Ouviu falar de um novo dispositivo intra-oral para perda de peso? Não se iluda com essa cilada…


Pela nutricionista Fernanda Pisciolaro

Recentemente saiu em diversos meios de comunicação o lançamento de um dispositivo odontológico “inovador” para perda de peso, como uma nova promessa de emagrecimento rápido e que “contribuiria a combater a “epidemia mundial de obesidade””.

Bem, veja bem…

Tal dispositivo foi desenvolvido e publicado em um artigo científico por uma equipe de dentistas da Nova Zelândia(1). O artigo descreve o procedimento odontológico realizado nas 7 pessoas que preencheram os critérios estabelecidos (que inclusive já seriam um fator limitante para boa parte dos indivíduos com obesidade). O dispositivo limita a mobilidade da boca e está associada a uma dieta líquida de baixo valor calórico por 15 dias. Apenas 5 pessoas finalizaram o estudo. Ao ler o resumo inicial, é possível identificar 3 pontos centrais enaltecidos: a necessidade de estratégias para combate á obesidade foi colocada como justificativa para o desenvolvimento do dispositivo; foi avaliada acessibilidade e tolerância ao uso do aparelho pelos participantes; e concluído que a tolerância foi boa e os participantes perderam peso. Tudo parece mágico, até que você lê o artigo completo e surgem algumas questões, diante de citações, algumas aqui traduzidas grosseiramente:

– “Pessoas obesas podem sofrer transtornos alimentares, juntamente com estigmatização e discriminação” – e será que usar um aparelho ortodôntico que causa desconforto de fala, dor, constrangimento social, dificuldade em manter o trabalho normalmente e pode promover até 5% de perda de peso (e não “curar” uma obesidade, como parece ser a promessa inicial), pode ajudar na prevenção dos transtornos alimentares, estigmatização e discriminação? Ou será que seria o inverso?

– “A redução de peso pode melhorar a expectativa de vida e também reverter muito das condições médicas que estão associadas com obesidade” – E como o indivíduo faria para sustentar perda de peso por esse método até que esses benefícios possam ser conquistados, já que foi estudado o uso por apenas 15 dias?

– Na introdução, questionam o fato de que “Restrição calórica em geral é apenas bem-sucedido no curto prazo pois geram pouca motivação e baixa adesão a mudanças no estilo de vida” – E no fim, não é restrição calórica em curto prazo que está sendo proposto?

– “Na obesidade mórbida os hábitos alimentares estão firmemente estabelecidos e difíceis de mudar” – E como esse dispositivo atua em relação à mudança de hábitos?

– “Na década de 1980, com a fixação da mandíbula, […] muitos pacientes se sentiram ansiosos e alguns desenvolveram doenças psiquiátricas” – Diversos outros procedimentos já foram testados com o objetivo de limitar a ingesta de alimentos, tendo inclusive uma “versão” antiga de dispositivo ortodôntico estudada que trouxe muitas consequências deletérias, tanto em questões fisiológicas, como psicológicas. Em relação a esse último ponto, será que existem diferenças em relação a essa nova proposta?

– E um dos parágrafos mais chocantes: “Após 24 horas, os participantes indicaram que ocasionalmente se sentiam constrangidos e que a vida, em geral, era menos satisfatória. Apesar disso, todos os participantes se acostumaram ao dispositivo durante o período de tratamento e puderam trabalhar com eficácia em seu emprego habitual. Embora todos os participantes considerassem a dieta líquida monótona, os participantes não reclamaram de fome, fadiga, tontura ou palpitações, que são comumente associados a regimes de baixa caloria. No entanto, os participantes indicaram que a comida era muito açucarada e sugeriram adicionar alimentos saborosos ao regime de dieta, como bebidas salgadas ou sopas. Um paciente admitiu ‘sabotar a dieta’, consumindo chocolate derretido e refrigerantes. Isso não foi surpreendente, pois os estudos mostraram que os pacientes obesos geralmente têm uma ‘personalidade de adição’ e uma impulsividade por alimentos açucarados, e sofrem de transtornos da compulsão alimentar” – Se acostumaram ao dispositivo, na verdade significa que se mantiveram com o mesmo nível de constrangimento e vida menos satisfatória no período avaliado. Não reclamaram de fome e fadiga talvez porque a dor na mandíbula era maior (relataram aumento importante da dor)? É sempre uma limitação para qualquer dieta, a interface com a comida em todos os ambitos sociais, culturais, individuais, afetivos… e sugerir que pessoas com obesidade são “sabotadores/traidores” e com “personalidade aditiva” é no mínimo um grande preconceito desrespeitoso. Essas são questões trazidas pela dieta restritiva, não pelo tamanho da pessoa. Como esse procedimento impediria comportamentos “aditivos” em relação à alimentação? Diversas outras técnicas restritivas (tanto de restrição de consumo, quanto de absorção ou ainda através de evitação do contato com os alimentos já falharam bravamente em “controlar a compulsão alimentar”) …

Enfim: é de conhecimento de todos que a obesidade é uma condição associada a inúmeros fatores, que interagem entre si e, portanto, uma ação centrada numa única abordagem dificilmente terá bons resultados. A pesquisa em questão foi desenvolvida apenas por dentistas que avaliaram os principais comprometimentos odontológicos, sem avaliação de outras especialidades e outros problemas que poderiam estar associados, como impacto psicológico e psiquiátrico, impacto das modificações alimentares, impactos metabólicos em curto, médio e longo prazos, etc.

Essas promessas de emagrecimento rápido devem ser sempre olhadas com muita cautela e crítica. Em geral são hipervalorizadas pelas mídias (os próprios autores se posicionaram posteriormente à publicação, dizendo que essa era uma proposta para situações específicas e que ainda estava em estudo). O controle da obesidade depende de um olhar cuidadoso e amplo e, em relação à alimentação, e precisamos satisfazer as necessidades nutricionais juntamente com as necessidades culturais e simbólicas, para que seja efetivo em longo prazo. O foco em mudança de comportamentos-problema (e não no peso em si) têm se mostrado muito mais efetivo e satisfatório nesse processo.

Fique atento!

 

Referência:



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